PACTOS E IMPACTOS DA LEITURA - Resenha

Guilherme Silva Vanderley
0

Há, nas livrarias em todo o país, inúmeras distopias que chamam a atenção do leitor pela curiosidade em descobrir um mundo totalmente diferente daquele que conhecemos. De fato, a curiosidade leva muitas pessoas à leitura, afinal, ler nos leva a outros campos do imaginário, lá onde a criatividade e o senso crítico tomam forma. E não é somente na literatura clássica que alcançamos essas instâncias do saber, também na contemporaneidade, ora literária, ora política.

Nesse pensamento, comecei a alterar a forma como a leitura é difundida e explorada em sala de aula. Enquanto professor de Língua Portuguesa, eu havia buscado inserir os clássicos literários no cotidiano dos meus alunos. Assim, a leveza trágica de Macabéa chamou a atenção e despertou paixão em muitos olhos. De outro modo, a envolvente, porém, densa trajetória de Fabiano e sua família não tiveram o mesmo alcance. Nessa linha também se seguiu o engraçado enredo do Dr. Bacamarte; poucos riram do clássico. É verdade que não renunciarei à literatura em sala de aula, mas, por ora, algo deveria mudar.

Por consequência, foi necessário repensar como a leitura seria desenvolvida na reta final do período letivo deste ano. Surgiu, portanto, uma ideia: não mais um livro por bimestre, agora seriam dois. Mas, no menor bimestre? Isso mesmo. Firmamos um pacto de leitura conjunta, dinâmica e cercada por diálogos e debates, por vezes, extremamente acalorados. Pensando em uma temática central nos últimos anos e na proximidade do Dia da Consciência Negra, os livros foram escolhidos. Dessa forma, os títulos escolhidos foram Pacto da Branquitude, de Cida Bento e Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro.

Desse modo, nas últimas semanas, meus alunos do oitavo ano e eu estávamos lendo a obra da autora Cida Bento. Neste livro, a autora discute a forma como a sociedade branca firma um pacto de cumplicidade não verbalizado, uma cooperação que perpetua as desigualdades sociais e econômicas baseadas no preconceito racial. De início, a obra publicada pela Companhia das Letras, em 2022, traz à baila acontecimentos do cotidiano ao redor das vivências da própria autora. Isso mostra que até para ela, intelectual, doutora em psicologia, militante política da causa negra, o racismo ainda está presente.

Nesse viés, a diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) explora o conceito de Pacto Narcísico, o qual está relacionado à autopreservação do que é considerado normal ou universal, nesse padrão, o negro é invasor, é diferente e, portanto, deve ser, invisibilizado, desconsiderado. Como componente fundamental do pacto narcísico, destaca-se também o conceito de meritocracia, o qual é difundido com amplitude em diversos espaços sociais, bem como na escola. Dessa forma, a meritocracia, segundo Bento (2022), é a justificativa usada pelas lideranças brancas para o incontestável vazio de presenças pretas em cargos de alto escalão em empresas públicas e privadas.

Contudo, a autora demonstra em diversos momentos como a capacitação elevada, a carreira acadêmica de sucesso, os diversos prêmios e feitos em cada área do mercado ainda representam, para a pessoa preta, uma pequena parcela do que é levado em consideração na hora de decidir quem ocupará uma vaga de trabalho. E, desse modo, a cumplicidade estabelecida pela branquitude mantém a estrutura de poder racial e inviabiliza a contribuição real da comunidade preta, preservando, assim, o status quo, no qual a diversidade é apenas uma estratégia publicitária (Bento, 2022).

Como sabemos, essa instituição do branco como ser universal, enquanto o preto é considerado o diferente, o acessório, é algo constituído pelo discurso eurocêntrico que nos invade desde a colonização. Foi pela desumanização dos povos pretos que o branco se alçou ao poder, ao privilégio, este, do qual ele jamais abre mão, jamais cede, jamais se liberta. E assim, o capitalismo racial fincou pés em nossas terras, baseando-se na supremacia branca, na dominação do mercado por meio da expropriação do trabalho escravo, que colocou, por mais de trezentos anos, o preto na posição de subserviência, enquanto o branco dominava não somente os arreios e os chicotes, mas também a economia e a cultura.

Em sequência, a obra explora a relação entre masculinidade branca, nacionalismo patriarcal e autoritarismo. Nesse contexto, foi definido também o conceito de Ser Biológico. Aqui, a obra avança na discussão acerca de como, em diferentes nações, o homem branco se apoderou do discurso nacionalista e autoritário, utilizando mecanismos estatais para impor sua autoridade sobre a população negra, como resposta à inferioridade física que é disseminada em discursos, muitas vezes de forma pejorativa. Nesse campo, a autora revela, a partir de retratos da realidade, como os corpos das pessoas negras são considerados apenas em seu âmbito biológico, como carne, ossos e sangue.

Além de toda essa discussão, faz-se necessário pensar o racismo exclusivamente no caso das mulheres, elas que sofrem dupla opressão, baseada na intersecção do machismo e do racismo. Nesses trechos, a autora apresenta o modo como o homem branco, na posição de liderança do mercado, repele a entrada de mulheres, principalmente as negras, que sempre são, embora capacitadas, colocadas em espaços de inferioridade econômica e intelectual. Nesse ponto, Cida Bento reflete sobre o trabalho do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) e a importância dos movimentos sociais na promoção da diversidade em todos os âmbitos sociais.

Durante os dias de leitura, ouvi dos estudantes diversos casos pessoais em que o racismo foi estabelecido de modo velado ou explícito, evidenciando uma estrutura cujo alicerce está fortalecido. Entretanto, toda e qualquer construção estabelecida sobre bases distorcidas deve cair por terra, antes que mais paredes desabem sobre os ombros de inocentes. Em cada fala, percebia um avanço significativo que representava mais um passo à frente, em direção à desconstrução desse alicerce. Os diálogos firmados em aula representam, além disso, a participação ativa e crítica de constituintes de uma sociedade branca que deverá agir de modo a cessar os privilégios e estruturas racistas.

Por fim, ressalto a importância da leitura da obra Pacto da Branquitude, de Cida Bento, nos espaços educacionais, pois é na sala de aula, que muitos dos aspectos centrais da personalidade e do caráter das pessoas são formados. Esta leitura conjunta com alunos de 12 a 14 anos, na reta final do oitavo ano do ensino fundamental, mostrou como a temática racial deve estar presente em todos os níveis acadêmicos, pois gerou reflexões repletas de conhecimento, de vivências e de descobrimentos que seguirão com os jovens na continuidade de sua vida escolar, no mercado de trabalho e no cotidiano. Portanto, aos demais professores, de diferentes áreas do conhecimento, deixo expressa a indicação de leitura e discussão.
Referências
BENTO, Cida. Pacto da Branquidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 

Postar um comentário

0Comentários

Postar um comentário (0)

#buttons=(Ok, vamos lá!) #days=(20)

Nosso site usa cookies para melhorar sua experiência. Políticas de Cookies
Ok, Go it!